O CORRETO USO DO
PAPEL HIGIÊNICO
Esta foi a última coluna escrita por João
Ubaldo Ribeiro, que seria publicada no dia 20 de julho
O título acima é meio enganoso, porque não posso
considerar-me uma autoridade no uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará
aqui alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos
tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa do
Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas normas
para, em banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que estamos levando
em conta não só o que é melhor para nós como para a coletividade e o ambiente.
Por exemplo, imagino que a escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser
regulamentada, depois que um estudo científico comprovar que, se a saída do
papel for pelo lado de cima, haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com
a consequência de que mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas
para fazer mais papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também
precisa ter suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro
dia, num programa de tevê.
Tudo simples, como em todas as medidas que agora vivem
tomando, para nos proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos
próprios hábitos e preferências pessoais. Nos banheiros públicos, como os de
aeroportos e rodoviárias, instalarão câmeras de monitoramento, com aplicação de
multas imediatas aos infratores. Nos banheiros domésticos, enquanto não passa
no Congresso um projeto obrigando todo mundo a instalar uma câmera por
banheiro, as recém-criadas Brigadas Sanitárias (milhares de novos empregos em
todo o Brasil) farão uma fiscalização por escolha aleatória. Nos casos de
reincidência em delitos como esfregada ilegal, colocação imprópria do rolo e
usos não autorizados, tais como assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para
limpar o ouvido, os culpados serão encaminhados para um curso de educação
sanitária. Nova reincidência, aí, paciência, só cadeia mesmo.
Agora me contam que, não sei se em algum estado ou no país
todo, estão planejando proibir que os fabricantes de gulodices para crianças
ofereçam brinquedinhos de brinde, porque isso estimula o consumo de várias
substâncias pouco sadias e pode levar a obesidade, diabetes e muitos outros
males. Justíssimo, mas vejo um defeito. Por que os brasileiros adultos ficam
excluídos dessa proteção? O certo será, para quem, insensata e
desorientadamente, quiser comprar e consumir alimentos industrializados,
apresentar atestado médico do SUS, comprovando que não se trata de diabético ou
hipertenso e não tem taxas de colesterol altas. O mesmo aconteceria com
restaurantes, botecos e similares. Depois de algum debate, em que alguns
radicais terão proposto o Cardápio Único Nacional, a lei estabelecerá que, em
todos os menus, constem, em letras vermelhas e destacadas, as necessárias
advertências quanto a possíveis efeitos deletérios dos ingredientes, bem como
fotos coloridas de gente passando mal, depois de exagerar em comidas
excessivamente calóricas ou bebidas indigestas. O que nós fazemos nesse terreno
é um absurdo e, se o estado não nos tomar providências, não sei onde vamos
parar.
Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas
tenho certeza de que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo
para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser
denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma
consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em seu
comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é entregue aos
cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de um pai
cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por
profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um
cidadão modelo. E a lei certamente se aperfeiçoará com a prática, tornando-se
mais abrangente. Para citar uma circunstância em que o aperfeiçoamento é
indispensável, lembremos que a tortura física, seja lá em que hedionda forma —
chinelada, cascudo, beliscão, puxão de orelha, quiçá um piparote —, muitas
vezes não é tão séria quanto a tortura psicológica. Que terríveis sensações não
terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais discutindo
e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança dessa maneira
desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou brigas em casa, a
criança não tem nada a ver com os problemas dos adultos, polícia neles.
Sei que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é
exagerada, e o que inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado
lógico e faz parte do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso,
inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse tipo de
coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras para o que nos
permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou
publicamos e podendo punir até uma risada que alguém considere hostil ou
desrespeitosa para com alguma categoria social. Não parece estar longe o dia em
que a maioria das piadas será clandestina e quem contar piadas vai virar uma
espécie de conspirador, reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de
estranhos. Temos que ser protegidos até da leitura desavisada de livros. Cada
livro será acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do
que devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser
comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que
precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de pessoas de
vocabulário neandertaloide. Por enquanto, não baixaram normas para os
relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar se o que vocês andam
aprontando está correto e não resultará na cassação de seus direitos de cama,
precatem-se.
João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) era escritor e imortal da
Academia Brasileira de Letras
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